terça-feira, 19 de julho de 2011

Futebol e Sadismo

(texto extraído da obra: Futebol Levado a Riso: Lições do Bobo da Corte - Rubem Alves, Ed. Verus. 2006)

Eu nunca fui bom de bola. Por isso  foi uma supresa quando recebi um telefonema: 
- É o Rubem Alves?
- Sim.
- Sou repórter. Meu jornal está fazendo uma pesquisa. Seu nome foi um dos escolhidos para responder a uma pergunta sobre futebol.
- E a pergunta qual é - Perguntei.
- É a seguinte: Acha que o time do Brasil deve jogar futebol eficiente e feio que faz gols ou jogar futebol bonito que é arte?
Suspirei aliviado. Não entendo de nomes e detalhes, mas sobre essa pergunta tenho opiniões precisas, que comecei a formar quando uma paciente me fez uma observação surpreendente. A gente falava sobre humor e desenhos animados. Ela chamou a minha atenção para o fato de que, nos desenhos, a gente só ri em situações sádicas. É quando Tom cai na piscina vazia e se quebra como se fosse vaso. Ou um piano lhe cai em cima, e ele sai andando feito caranguejo. Ou quando o rolo compressor o transforma em panqueca. Desenhos bonitinhos e bonzinhos como os dos Smurfs não fazem rir. Para haver o riso, é preciso que o vilão se ferre.
É claro que a gente sabe que, depois de se partir em mil cacos, o Tom vai reaparecer, na cena seguinte, forte e mau como sempre, sem apresentar quaisquer sinais do sucedido anteriormente. [...]
Desde então fiquei brincando com a hipótese de que a alegria do futebol é parecida. Ela acontece quando a gente tem a chance de realizar o desejo sádico sobre o adversário, que é sempre o Tom da estória.
- Agora veja: o jogo foi pura arte, um maravilhoso espetáculo de balé! Os passes sob medida, as fintas geniais, as articulações com a precisão de teoremas, a técnica dos jogadores, semelhante a de Nureyev. Só que terminou 0 a 0. Você acha que os torcedores sairão pela rua cantando e gritando: "que bonito foi! que bonito foi!?"
- Claro que não - ela respondeu.
- Pois é - continuei -, ninguém assiste futebol para ter experiências estéticas. Quem quer ter experiências estéticas vai ao teatro. A gente assiste futebol para a indescritível felicidade de ferrar o adversário e fazê-lo sofrer. Pois você há de concordar: o que é felicidade pra quem faz, é dor para quem leva.[...]
Fazer um gol contra a Suécia pode dar prazer, mas o prazer não é muito grande. É um povo tão bom, tão branco, tão louro, tão simpático. A gente não tem nada contra eles. Melhor seria não fazê-lo. O que não é o caso da Argentina. Ah! Que prazer divino é fazê-los sofrer, especialmente sabendo que eles pensam o mesmo da gente. O prazer do gol contra a Argentina vale cem vezes mais o prazer de um gol contra a Suécia. Um gol da Argentina dói também cem vezes mais [...]
Futebol-arte só é bonito quando o time da gente está ganhando e serve para humilhar ainda mais o adversário. Quem diria que o gozo do futebol tem a ver com a realização de impulsos sádicos e perversos? 
Mas tenho que terminar esta crônica. O Brasil joga daqui a pouco. Tudo já está preparado. [...] Vou sofrer e gozar. Mas sei que no final, todos os Toms ressuscitarão. Ressurgirão, belos e lampeiros, em seus uniformes brilhantes na próxima Copa, como se nada tivesse acontecido. Tudo é desenho animado.

(Rubem Alves é pedagogo, poeta, filósofo de todas as horas, um dos intelectuais mais famosos do Brasil.)

Um comentário:

  1. Rubem Alves. Que sabedoria, ele está realmente certo, o que seria do meu Flamengo sem o Vasco. Muito bom o texto.

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